(Roberto Amaral - ACS / Brazilian Space) O desafio da conquista espacial, se é apaixonante, na mesma medida é espinhoso, porque, entre o sonho indispensável para o fazer e a realidade objetiva, inafastável, não são poucos os obstáculos pontuando nossa caminhada, que exige esforço e exige humildade para enfrentar incompreensões e até mesmo resistências, umas claras, outras dissimuladas, mas ambas difíceis de vencer.
Não posso falar de flores, porque relativamente ao Programa Espacial, no que diz respeito a foguetes e a sítios de lançamento de veículos espaciais, não fomos condecorados com as facilidades que, parece-nos, estão prestigiando outros empreendimentos. Portanto, se não posso falar de grandes sucessos, relatarei muitas dificuldades, pensando estar contribuindo para a tomada de consciência da necessidade de mudar a política espacial brasileira, e, principalmente, sua gestão.
A experiência que recolho do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e a experiência atual que resulta do esforço de constituir a bi-nacional Alcântara Cyclone Space-ACS, levam-me a reflexão pouco animadora quando me deparo com o inventário de óbices (na sua maioria criados dentro da própria estrutura estatal) que enfrentamos nesses três anos e pouco de vida, severina, da ACS. Essa reflexão diz-me que se há um Estado apto a fazer, há outro Estado, olímpico, cuja única tarefa é dificultar o trabalho dos que têm a missão do fazer. Esse Estado, assim esquizofrênico, não é fruto de si mesmo, pois é o resultado de uma série de deformações que remontam à sua própria formação. De um lado, questões de ordem cultural, condizentes com nossa visão atacanhada de país; de outro lado, questões de ordem estrutural, que dizem respeito à fragilidade instrumental do próprio Estado pós neoliberalismo, convenientemente desaparelhado para administrar seus interesses estratégicos. O fato objetivo é que o estado idespreparado para o mister estratégico jaz sem condições de eleger suas prioridades e novos ritos administrativos, a elas adequados. O pano de fundo pode ser um certo viés ideológico, nos dizendo que determinados projetos, curiais entre os desenvolvidos, estão interditados aos países em desenvolvimento ou emergentes. Essa cultura remonta à nossa formação de país e povo, assim, lamentavelmente nessa ordem, com as alienadas classes dirigentes nos impondo uma visão colonizada do mundo. É evidente que sabemos organizar o Carnaval carioca, a queima de fogos de Copacabana no réveillon, talvez tenhamos até -- mas há quem duvide!-- condições para organizar uma Copa do Mundo de futebol e uma Olimpíada. Mas envolver-se com energia nuclear ou com programas espaciais, ah! não, isso não é para nós, que nascemos e fomos criados como exportadores de comodites primárias (do café à soja), alimento em grão e minério in natura.
Daí, pensar em projeto nacional com fundamento em nossas próprias forças, cogitar da possibilidade de desenvolvimento econômico, ansiar pelo progresso, tornar-se mesmo uma potência (a não ser no futebol), ah! isso nos foi sempre interditado. Ainda há os que, mesmo em funções de Estado, não entendem o esforço nacional visando à construção de nossos próprios satélites e nossos próprios foguetes, como há os que não entendem a insistência brasileira em desenvolver seu programa nuclear com tecnologia própria, fabricar seu submarino, fabricar seus aviões.
Pois há, igualmente, os que não compreendem (ou fingem não compreender) que segurança e autonomia estejam no eixo de nossas políticas de defesa nacional.
A Estratégia Nacional de Desenvolvimento, confunde-se com a Estratégia Nacional de Defesa e desse encontro resulta o projeto de independência nacional, assentado no tripé (i) mobilização de recursos físicos, econômicos e humanos, para o investimento no potencial produtivo do país; (ii) "capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético1 e nuclear", e (iii) "democratização de oportunidades educativas e econômicas e pelas oportunidades para ampliar a participação popular nos processos decisórios da vida política e econômica do país"2.
E qual é o nosso projeto?
O 'caso' ACS configura-se na convergência de interesses estratégicos de dois países. Como todos sabemos, dispomos, não apenas em Alcântara, mas em todo o Norte e Nordeste brasileiro, da melhor área do Planeta para lançamentos de foguetes. Por duas razões muito simples:
(i) na região de Alcântara (Maranhão), por exemplo, estamos a 2,2 graus e no litoral do Ceará a 3,8 graus ao sul do Equador (Kourou, na Guiana, onde se localiza o centro de lançamentos europeu, a segunda melhor colocação, está 5 graus ao Norte) o que confere, a qualquer objeto na superfície, uma velocidade tangencial elevada, ou seja, um impulso inicial muito favorável aos lançamentos equatoriais, como é o caso dos satélites de comunicação. Isso se traduz em aumento da capacidade de transporte dos lançadores, tornando-os mais competitivos em comparação com lançamentos em latitudes mais elevadas, isto é, mais distantes do equador.
(ii) frente ao nosso litoral, temos ampla e desabitada área marítima, o que é essencial para fins de segurança. Assim, os lançamentos podem percorrer trajetórias mais simples, “planas”, e colocar diretamente satélites em órbita, praticamente sem necessidade de manobras, ao contrário de todos os outros centros de lançamento. Por força disso, pensou-se, pensam alguns visionários, que detemos todas as condições de montar um grande complexo espacial-científico. A ideia inicial era ter ao lado do atual Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), operado pela Força Aérea e destinado ao VLS, mais três sítios de lançamento espacial, capazes de operar com outros veículos, além daqueles já em desenvolvimento pelo programa autônomo. Um deles seria o Cyclone-4, da ACS. E teríamos, como retaguarda desses sítios, e em função deles, um parque de empresas de apoio às atividades espaciais, assim como instituições de ensino e pesquisa de tecnologia pura e de tecnologia de ponta. Ainda como efeito dessa revolução técnica na região, as atividades industriais e de serviços favoreceriam, substancialmente, o desenvolvimento do potencial turístico da região alcantarense e ludovicense.
Lembremo-nos que, em 1980, a concepção do CLA previa a implantação em uma vasta área de 62 mil hectares, dos quais apenas 20 mil seriam propriamente utilizados para fins operacionais (o restante seria para realocação de pessoas, para reservas naturais e para a fixação do parque de apoio industrial). As vastas extensões de terra são um imperativo de segurança, como sói ocorrer nos principais centros de lançamento mundiais. Dentro dessa área operacional do CLA, foi alocada para a ACS uma área de 1.298 hectares e um futuro porto.
Daqui em diante, o ideal começa afastar-se da realidade. Uma entidade do Estado brasileiro, o INCRA, decidiu que, no município de Alcântara, havia um gigantesco território quilombola. Cerca de 90% do território do atual município. Ficaram de fora a pequena sede com sua arquitetura colonial ameaçada pelo desamparo, e a área atualmente ocupada pelo CLA da Aeronáutica. Quais as consequências disso? Primeira: a ACS foi despojada de sua área. Segunda: o CLA, cuja concepção original previa dezenas de milhares de hectares, viu-se reduzido a menos de uma dezena de milhar e perdeu toda e qualquer possibilidade de expansão.
Entre outras muitas questões que poderiam ser tratadas, cito algumas poucas que bem demonstram as dificuldades antepostas aos projetos estratégicos brasileiros. As condições de acesso configuram um caso exemplar. A área do CLA (onde se está instalando a ACS em terreno alugado à Aeronáutica) está encravada no assim chamado território quilombola, de que resulta o acesso às áreas operacionais estar condicionado ao trânsito por esse território, trânsito de pessoas, de equipamentos e de materiais, algumas vezes substâncias perigosas (como, os componentes de propelente, hidrazina e tetróxido) circulando por áreas povoadas. Além disso, o Ministério dos Transportes, que administrava a construção do porto, se esqueceu de alocar a respectiva verba3. Por essa e incrível razão, seremos obrigados, para poder garantir a chegada e desembarque de materiais e equipamentos, a utilizar um atracadouro rudimentar, localizado a mais de 50 quilômetros do sítio da ACS. Para tanto, vimo-nos na contingência de melhorar todo esse caminho. Estamos reconstruindo, com recursos da AEB, a estrada que liga Cujupe a Alcântara.
E o foguete (de 24,5 a 35ton) quando não carregado) virá de Dnepropetrouvsk (Ucrânia) a Alcântara de avião, a um preço hoje estimado de 1.700 mil dólares.
Antes, nosso maior adversário, ao lado de algumas ONGs estrangeiras, era um órgão brasileiro chamado Fundação Palmares (Ministério da Cultura). Munida de argumentos que, em princípio, visariam a defesa das populações remanescentes de quilombos e a preservação de valores culturais, muitos foram os obstáculos apresentados à implantação da ACS. As poucas cem famílias que seriam diretamente afetadas pela implantação do sítio da ACS, mas que viam nisso uma perspectiva de melhoria das condições locais, acabaram sendo mobilizadas para impedir os primeiros estudos de campo. (Refiro-me ao bloqueio de fevereiro de 2008) E como se não bastasse isso, não nos foi permitido permanecer na área antes cedida pelo governo federal. O juiz da 5ª Vara Federal do Maranhão nos deu 24 horas para sairmos dali, da área anteriormente cedida pelo Estado brasileiro, daí a necessidade de nos instalarmos no seio do CLA, o que demandou largos meses de negociações. Ao todo, nessa operação foram consumidos 14 meses, entre o bloqueio de nossa área e a liberação pela justiça e cerca de um ano gastamos em negociações com o Ministério da Defesa, negociações levadas a bom termo, o que nos possibilitou a disponibilidade de uma área, nossa atual área, de 462 ha ( a original era de 1298 ha).
Ainda assim, estamos muito gratos à Força Aérea, pois nos acolheu no pouco espaço que lhe resta. Foi ela que salvou o projeto, mas saímos de uma área em que dispúnhamos de acesso livre para uma área em que o acesso é subordinado a lógicas, normas e regras militares, muitas vezes incompatíveis com projetos industriais. Inclusive agora estamos nos reunindo com os companheiros do CLA, porque, finalmente!, tiveram início as obras e temos de fazer um cadastramento de todos os técnicos, todos os empregados da ACS transferidos e os operários (estimados 1.500 no pique das obras) das empresas contratadas para a construção do sítio, bem como temos de definir sistemáticas de controle que conciliem nossas necessidades de acesso com os ditames de segurança daquele Centro militar.
Quando nos voltamos para a gênese da corrida espacial, vemos quão distintas foram as ações que viabilizaram o sonho, as necessidades e a realização das aspirações estratégicas. A Rússia começou seu programa espacial em 1950, o Brasil em 1961. Chegamos em 1988 com a Rússia lançando veículos reutilizáveis. Os Estados Unidos, que começaram também na mesma década, de há muito operam naves e estações espaciais tripuladas, além de um vasto leque de sondas que exploram o Sistema Solar e o espaço profundo. Os avanços desses países protagonistas, motivados pela Guerra Fria e por suas necessidades econômicas, foram cumulativos e espetaculares. Mas foram somente eles, além de Japão e países Europa, como a França, os únicos atores no cenário espacial?
Há outros programas espaciais que também despertam a atenção. A China, por exemplo, começa em 1956. E em 2003 já levava o homem ao espaço. A Índia já lançou satélites e sondas, o mesmo ocorrendo com Israel. A Coréia, após o insucesso com seu primeiro lançamento em 2010, está na iminência de ser o mais recente país a adentrar no “clube os lançadores”. Até a Coréia do Norte e o Irã estão à nossa frente. Nossa primeira atividade como lançadores de foguete data de 1965. Avançamos com uma família de veículos de sondagem suborbitais. Produzimos e operamos satélites de pequeno e médio portes. Nosso lançador de satélites, no entanto, ainda não vingou, após nada menos de 30 anos de esforços despendidos. Por que isso? Somos incompetentes, ou Deus não gosta dos brasileiros? A resposta é simples: somos o 23º investidor em programa espacial se considerarmos o PIB de cada país. Os recursos alocados para investimento no programa espacial brasileiro não passam de 0,010% do nosso PIB, ou seja, cerca de dez vezes menos que a França, que a Rússia e que a China.
Vejamos nossa situação em face dos BRICs. A Rússia investiu, em 2009, dois bilhões e quatrocentos milhões de dólares estadunidenses em seu programa espacial, e estamos com apenas cento e sessenta e quatro milhões. Ainda é muito pouco, mas temos que reconhecer: os investimentos, que vinham em linha decrescente, foram retomados no início desta década, uma inversão conduzida pelo governo do Presidente Lula. Quando do acidente do VLS, dei entrevista como ministro de Ciência e Tecnologia, afirmando que o projeto de VLS havia sido atingido mortalmente pela dieta de recursos. Fui criticado por todo mundo, inclusive por colegas de governo. Neste texto repito aquela afirmação, agora respaldado em dados irrespondíveis, a saber, o quadro de distribuição dos recursos de 1980 a 2009 (o acidente, como sabemos, foi em 2003) e as conclusões a que chegou a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, convocada para apurar as causas do acidente.
Somente no período 1985-1989, os investimentos se concentraram nos três segmentos de atividade - satélites, veículos e centros de lançamento - com uma média anual de 100 milhões de dólares. Daí em diante, penúria! Em 1990 os investimentos caíram para 57 milhões e em 1999 não passaram de 9,9 milhões. Ao todo, o País gastou, de 1980 a 2002 (véspera do lançamento do VLS), apenas US$ 530,2 milhões. Como pensar seriamente em lançar nosso VLS se, a cada ano, o governo reduzia os investimentos? De US$ 27,5 milhões em 1995, caímos para 18,7 em 96, para 11,271 em 97, para 10,408 em 98 e, finalmente, para US$ 3,7 milhões em 2002. Em 1999, o governo havia tido o desplante de só aplicar US$ 1,6 milhão!
Eis o resumo da atenção que estamos dando aos projetos estratégicos. Em 26 anos de desenvolvimento do VLS, que seria o nosso primeiro veículo satelizador, fizemos três tentativas, três insucessos. O esforço terá sido inútil? De certo que não, pois muito se aprendeu e se avançou. Mas o acidente comprometeu o ritmo e lançou dúvidas sobre diversos aspectos do projeto. E como temos reagido? Qual a massa crítica de pesquisadores, engenheiros e técnicos que possuímos para aprender com as falhas, revisar projetos, divisar soluções? Qual o efetivo envolvimento sustentável da indústria que conseguimos realizar? A inanição a que os projetos estratégicos são submetidos leva a esse arrastar de poucos resultados e ao abandono de profissionais e empresas. Veja-se, também, o caso do submarino de propulsão nuclear: estamos há 21 anos desenvolvendo e agora, dependendo de uma cooperação com a França, devemos esperar por mais uma década, pelo menos. Certamente, há que se repensar a forma e a firmeza com que devem ser conduzidos os projetos estratégicos, algo que suplanta os períodos governamentais e requer décadas de investimentos em gerações de profissionais, em entidades de formação e pesquisa, em infraestrutura laboratorial, em parque de indústrias com continuidade de demanda.
O que é encontro do Brasil com a Ucrânia?
A Ucrânia tem um dos melhores foguetes do mundo, mas, por questões geográficas, não dispõe de sítio de lançamento e não pode ter sítio de lançamento, porque não tem como fazer lançamentos sem que seu foguete sobrevoe outros países, descartando-se de seus diversos estágios. A Ucrânia, então, presentemente, é obrigada a lançar seus foguetes dos sítios da Rússia e do Casaquistão, Plesetsk e Baikonur. De nossa parte, temos excelentes áreas (como vimos em linhas passadas) para localização de sítios de lançamentos, mas não temos foguete. Eis o que se chama de encontro de interesses. A ACS é uma empresa de transporte espacial que pode, além de atender aos interesses diretos dos dois países, concorrer, com vantagens, no rico mercado de transporte de satélites mundial.
É óbvia a importância de satélites, mas satélite não é neutro, não é para uso apenas civil, não é apenas para uso meteorológico, é para quase tudo. Inclusive para levantamento de informações estratégicas, para vigiar fronteiras, para vigiar nossos mares e nossas plataformas de petróleo, para orientar movimentação de polícia e de exército, para orientar ações militares e armas teleguiadas, para garantir o funcionamento do novo sistema de controle de tráfego aéreo CNS/ATM.
O Programa Espacial em qualquer parte do mundo é dual, daí a dificuldade de a burocracia compreender o verdadeiro desafio. A questão não se reduz ao uso unicamente comercial de nossos lançadores, mas, sim, que já somos objeto da espionagem satelital. Se não tivermos capacidade de lançar de solo brasileiro, com foguete brasileiro, nossos satélites, sejam eles quais forem, não teremos condições de garantir a soberania do nosso País.
Não posso falar de flores, porque relativamente ao Programa Espacial, no que diz respeito a foguetes e a sítios de lançamento de veículos espaciais, não fomos condecorados com as facilidades que, parece-nos, estão prestigiando outros empreendimentos. Portanto, se não posso falar de grandes sucessos, relatarei muitas dificuldades, pensando estar contribuindo para a tomada de consciência da necessidade de mudar a política espacial brasileira, e, principalmente, sua gestão.
A experiência que recolho do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e a experiência atual que resulta do esforço de constituir a bi-nacional Alcântara Cyclone Space-ACS, levam-me a reflexão pouco animadora quando me deparo com o inventário de óbices (na sua maioria criados dentro da própria estrutura estatal) que enfrentamos nesses três anos e pouco de vida, severina, da ACS. Essa reflexão diz-me que se há um Estado apto a fazer, há outro Estado, olímpico, cuja única tarefa é dificultar o trabalho dos que têm a missão do fazer. Esse Estado, assim esquizofrênico, não é fruto de si mesmo, pois é o resultado de uma série de deformações que remontam à sua própria formação. De um lado, questões de ordem cultural, condizentes com nossa visão atacanhada de país; de outro lado, questões de ordem estrutural, que dizem respeito à fragilidade instrumental do próprio Estado pós neoliberalismo, convenientemente desaparelhado para administrar seus interesses estratégicos. O fato objetivo é que o estado idespreparado para o mister estratégico jaz sem condições de eleger suas prioridades e novos ritos administrativos, a elas adequados. O pano de fundo pode ser um certo viés ideológico, nos dizendo que determinados projetos, curiais entre os desenvolvidos, estão interditados aos países em desenvolvimento ou emergentes. Essa cultura remonta à nossa formação de país e povo, assim, lamentavelmente nessa ordem, com as alienadas classes dirigentes nos impondo uma visão colonizada do mundo. É evidente que sabemos organizar o Carnaval carioca, a queima de fogos de Copacabana no réveillon, talvez tenhamos até -- mas há quem duvide!-- condições para organizar uma Copa do Mundo de futebol e uma Olimpíada. Mas envolver-se com energia nuclear ou com programas espaciais, ah! não, isso não é para nós, que nascemos e fomos criados como exportadores de comodites primárias (do café à soja), alimento em grão e minério in natura.
Daí, pensar em projeto nacional com fundamento em nossas próprias forças, cogitar da possibilidade de desenvolvimento econômico, ansiar pelo progresso, tornar-se mesmo uma potência (a não ser no futebol), ah! isso nos foi sempre interditado. Ainda há os que, mesmo em funções de Estado, não entendem o esforço nacional visando à construção de nossos próprios satélites e nossos próprios foguetes, como há os que não entendem a insistência brasileira em desenvolver seu programa nuclear com tecnologia própria, fabricar seu submarino, fabricar seus aviões.
Pois há, igualmente, os que não compreendem (ou fingem não compreender) que segurança e autonomia estejam no eixo de nossas políticas de defesa nacional.
A Estratégia Nacional de Desenvolvimento, confunde-se com a Estratégia Nacional de Defesa e desse encontro resulta o projeto de independência nacional, assentado no tripé (i) mobilização de recursos físicos, econômicos e humanos, para o investimento no potencial produtivo do país; (ii) "capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético1 e nuclear", e (iii) "democratização de oportunidades educativas e econômicas e pelas oportunidades para ampliar a participação popular nos processos decisórios da vida política e econômica do país"2.
E qual é o nosso projeto?
O 'caso' ACS configura-se na convergência de interesses estratégicos de dois países. Como todos sabemos, dispomos, não apenas em Alcântara, mas em todo o Norte e Nordeste brasileiro, da melhor área do Planeta para lançamentos de foguetes. Por duas razões muito simples:
(i) na região de Alcântara (Maranhão), por exemplo, estamos a 2,2 graus e no litoral do Ceará a 3,8 graus ao sul do Equador (Kourou, na Guiana, onde se localiza o centro de lançamentos europeu, a segunda melhor colocação, está 5 graus ao Norte) o que confere, a qualquer objeto na superfície, uma velocidade tangencial elevada, ou seja, um impulso inicial muito favorável aos lançamentos equatoriais, como é o caso dos satélites de comunicação. Isso se traduz em aumento da capacidade de transporte dos lançadores, tornando-os mais competitivos em comparação com lançamentos em latitudes mais elevadas, isto é, mais distantes do equador.
(ii) frente ao nosso litoral, temos ampla e desabitada área marítima, o que é essencial para fins de segurança. Assim, os lançamentos podem percorrer trajetórias mais simples, “planas”, e colocar diretamente satélites em órbita, praticamente sem necessidade de manobras, ao contrário de todos os outros centros de lançamento. Por força disso, pensou-se, pensam alguns visionários, que detemos todas as condições de montar um grande complexo espacial-científico. A ideia inicial era ter ao lado do atual Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), operado pela Força Aérea e destinado ao VLS, mais três sítios de lançamento espacial, capazes de operar com outros veículos, além daqueles já em desenvolvimento pelo programa autônomo. Um deles seria o Cyclone-4, da ACS. E teríamos, como retaguarda desses sítios, e em função deles, um parque de empresas de apoio às atividades espaciais, assim como instituições de ensino e pesquisa de tecnologia pura e de tecnologia de ponta. Ainda como efeito dessa revolução técnica na região, as atividades industriais e de serviços favoreceriam, substancialmente, o desenvolvimento do potencial turístico da região alcantarense e ludovicense.
Lembremo-nos que, em 1980, a concepção do CLA previa a implantação em uma vasta área de 62 mil hectares, dos quais apenas 20 mil seriam propriamente utilizados para fins operacionais (o restante seria para realocação de pessoas, para reservas naturais e para a fixação do parque de apoio industrial). As vastas extensões de terra são um imperativo de segurança, como sói ocorrer nos principais centros de lançamento mundiais. Dentro dessa área operacional do CLA, foi alocada para a ACS uma área de 1.298 hectares e um futuro porto.
Daqui em diante, o ideal começa afastar-se da realidade. Uma entidade do Estado brasileiro, o INCRA, decidiu que, no município de Alcântara, havia um gigantesco território quilombola. Cerca de 90% do território do atual município. Ficaram de fora a pequena sede com sua arquitetura colonial ameaçada pelo desamparo, e a área atualmente ocupada pelo CLA da Aeronáutica. Quais as consequências disso? Primeira: a ACS foi despojada de sua área. Segunda: o CLA, cuja concepção original previa dezenas de milhares de hectares, viu-se reduzido a menos de uma dezena de milhar e perdeu toda e qualquer possibilidade de expansão.
Entre outras muitas questões que poderiam ser tratadas, cito algumas poucas que bem demonstram as dificuldades antepostas aos projetos estratégicos brasileiros. As condições de acesso configuram um caso exemplar. A área do CLA (onde se está instalando a ACS em terreno alugado à Aeronáutica) está encravada no assim chamado território quilombola, de que resulta o acesso às áreas operacionais estar condicionado ao trânsito por esse território, trânsito de pessoas, de equipamentos e de materiais, algumas vezes substâncias perigosas (como, os componentes de propelente, hidrazina e tetróxido) circulando por áreas povoadas. Além disso, o Ministério dos Transportes, que administrava a construção do porto, se esqueceu de alocar a respectiva verba3. Por essa e incrível razão, seremos obrigados, para poder garantir a chegada e desembarque de materiais e equipamentos, a utilizar um atracadouro rudimentar, localizado a mais de 50 quilômetros do sítio da ACS. Para tanto, vimo-nos na contingência de melhorar todo esse caminho. Estamos reconstruindo, com recursos da AEB, a estrada que liga Cujupe a Alcântara.
E o foguete (de 24,5 a 35ton) quando não carregado) virá de Dnepropetrouvsk (Ucrânia) a Alcântara de avião, a um preço hoje estimado de 1.700 mil dólares.
Antes, nosso maior adversário, ao lado de algumas ONGs estrangeiras, era um órgão brasileiro chamado Fundação Palmares (Ministério da Cultura). Munida de argumentos que, em princípio, visariam a defesa das populações remanescentes de quilombos e a preservação de valores culturais, muitos foram os obstáculos apresentados à implantação da ACS. As poucas cem famílias que seriam diretamente afetadas pela implantação do sítio da ACS, mas que viam nisso uma perspectiva de melhoria das condições locais, acabaram sendo mobilizadas para impedir os primeiros estudos de campo. (Refiro-me ao bloqueio de fevereiro de 2008) E como se não bastasse isso, não nos foi permitido permanecer na área antes cedida pelo governo federal. O juiz da 5ª Vara Federal do Maranhão nos deu 24 horas para sairmos dali, da área anteriormente cedida pelo Estado brasileiro, daí a necessidade de nos instalarmos no seio do CLA, o que demandou largos meses de negociações. Ao todo, nessa operação foram consumidos 14 meses, entre o bloqueio de nossa área e a liberação pela justiça e cerca de um ano gastamos em negociações com o Ministério da Defesa, negociações levadas a bom termo, o que nos possibilitou a disponibilidade de uma área, nossa atual área, de 462 ha ( a original era de 1298 ha).
Ainda assim, estamos muito gratos à Força Aérea, pois nos acolheu no pouco espaço que lhe resta. Foi ela que salvou o projeto, mas saímos de uma área em que dispúnhamos de acesso livre para uma área em que o acesso é subordinado a lógicas, normas e regras militares, muitas vezes incompatíveis com projetos industriais. Inclusive agora estamos nos reunindo com os companheiros do CLA, porque, finalmente!, tiveram início as obras e temos de fazer um cadastramento de todos os técnicos, todos os empregados da ACS transferidos e os operários (estimados 1.500 no pique das obras) das empresas contratadas para a construção do sítio, bem como temos de definir sistemáticas de controle que conciliem nossas necessidades de acesso com os ditames de segurança daquele Centro militar.
Quando nos voltamos para a gênese da corrida espacial, vemos quão distintas foram as ações que viabilizaram o sonho, as necessidades e a realização das aspirações estratégicas. A Rússia começou seu programa espacial em 1950, o Brasil em 1961. Chegamos em 1988 com a Rússia lançando veículos reutilizáveis. Os Estados Unidos, que começaram também na mesma década, de há muito operam naves e estações espaciais tripuladas, além de um vasto leque de sondas que exploram o Sistema Solar e o espaço profundo. Os avanços desses países protagonistas, motivados pela Guerra Fria e por suas necessidades econômicas, foram cumulativos e espetaculares. Mas foram somente eles, além de Japão e países Europa, como a França, os únicos atores no cenário espacial?
Há outros programas espaciais que também despertam a atenção. A China, por exemplo, começa em 1956. E em 2003 já levava o homem ao espaço. A Índia já lançou satélites e sondas, o mesmo ocorrendo com Israel. A Coréia, após o insucesso com seu primeiro lançamento em 2010, está na iminência de ser o mais recente país a adentrar no “clube os lançadores”. Até a Coréia do Norte e o Irã estão à nossa frente. Nossa primeira atividade como lançadores de foguete data de 1965. Avançamos com uma família de veículos de sondagem suborbitais. Produzimos e operamos satélites de pequeno e médio portes. Nosso lançador de satélites, no entanto, ainda não vingou, após nada menos de 30 anos de esforços despendidos. Por que isso? Somos incompetentes, ou Deus não gosta dos brasileiros? A resposta é simples: somos o 23º investidor em programa espacial se considerarmos o PIB de cada país. Os recursos alocados para investimento no programa espacial brasileiro não passam de 0,010% do nosso PIB, ou seja, cerca de dez vezes menos que a França, que a Rússia e que a China.
Vejamos nossa situação em face dos BRICs. A Rússia investiu, em 2009, dois bilhões e quatrocentos milhões de dólares estadunidenses em seu programa espacial, e estamos com apenas cento e sessenta e quatro milhões. Ainda é muito pouco, mas temos que reconhecer: os investimentos, que vinham em linha decrescente, foram retomados no início desta década, uma inversão conduzida pelo governo do Presidente Lula. Quando do acidente do VLS, dei entrevista como ministro de Ciência e Tecnologia, afirmando que o projeto de VLS havia sido atingido mortalmente pela dieta de recursos. Fui criticado por todo mundo, inclusive por colegas de governo. Neste texto repito aquela afirmação, agora respaldado em dados irrespondíveis, a saber, o quadro de distribuição dos recursos de 1980 a 2009 (o acidente, como sabemos, foi em 2003) e as conclusões a que chegou a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, convocada para apurar as causas do acidente.
Somente no período 1985-1989, os investimentos se concentraram nos três segmentos de atividade - satélites, veículos e centros de lançamento - com uma média anual de 100 milhões de dólares. Daí em diante, penúria! Em 1990 os investimentos caíram para 57 milhões e em 1999 não passaram de 9,9 milhões. Ao todo, o País gastou, de 1980 a 2002 (véspera do lançamento do VLS), apenas US$ 530,2 milhões. Como pensar seriamente em lançar nosso VLS se, a cada ano, o governo reduzia os investimentos? De US$ 27,5 milhões em 1995, caímos para 18,7 em 96, para 11,271 em 97, para 10,408 em 98 e, finalmente, para US$ 3,7 milhões em 2002. Em 1999, o governo havia tido o desplante de só aplicar US$ 1,6 milhão!
Eis o resumo da atenção que estamos dando aos projetos estratégicos. Em 26 anos de desenvolvimento do VLS, que seria o nosso primeiro veículo satelizador, fizemos três tentativas, três insucessos. O esforço terá sido inútil? De certo que não, pois muito se aprendeu e se avançou. Mas o acidente comprometeu o ritmo e lançou dúvidas sobre diversos aspectos do projeto. E como temos reagido? Qual a massa crítica de pesquisadores, engenheiros e técnicos que possuímos para aprender com as falhas, revisar projetos, divisar soluções? Qual o efetivo envolvimento sustentável da indústria que conseguimos realizar? A inanição a que os projetos estratégicos são submetidos leva a esse arrastar de poucos resultados e ao abandono de profissionais e empresas. Veja-se, também, o caso do submarino de propulsão nuclear: estamos há 21 anos desenvolvendo e agora, dependendo de uma cooperação com a França, devemos esperar por mais uma década, pelo menos. Certamente, há que se repensar a forma e a firmeza com que devem ser conduzidos os projetos estratégicos, algo que suplanta os períodos governamentais e requer décadas de investimentos em gerações de profissionais, em entidades de formação e pesquisa, em infraestrutura laboratorial, em parque de indústrias com continuidade de demanda.
O que é encontro do Brasil com a Ucrânia?
A Ucrânia tem um dos melhores foguetes do mundo, mas, por questões geográficas, não dispõe de sítio de lançamento e não pode ter sítio de lançamento, porque não tem como fazer lançamentos sem que seu foguete sobrevoe outros países, descartando-se de seus diversos estágios. A Ucrânia, então, presentemente, é obrigada a lançar seus foguetes dos sítios da Rússia e do Casaquistão, Plesetsk e Baikonur. De nossa parte, temos excelentes áreas (como vimos em linhas passadas) para localização de sítios de lançamentos, mas não temos foguete. Eis o que se chama de encontro de interesses. A ACS é uma empresa de transporte espacial que pode, além de atender aos interesses diretos dos dois países, concorrer, com vantagens, no rico mercado de transporte de satélites mundial.
É óbvia a importância de satélites, mas satélite não é neutro, não é para uso apenas civil, não é apenas para uso meteorológico, é para quase tudo. Inclusive para levantamento de informações estratégicas, para vigiar fronteiras, para vigiar nossos mares e nossas plataformas de petróleo, para orientar movimentação de polícia e de exército, para orientar ações militares e armas teleguiadas, para garantir o funcionamento do novo sistema de controle de tráfego aéreo CNS/ATM.
O Programa Espacial em qualquer parte do mundo é dual, daí a dificuldade de a burocracia compreender o verdadeiro desafio. A questão não se reduz ao uso unicamente comercial de nossos lançadores, mas, sim, que já somos objeto da espionagem satelital. Se não tivermos capacidade de lançar de solo brasileiro, com foguete brasileiro, nossos satélites, sejam eles quais forem, não teremos condições de garantir a soberania do nosso País.
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