“Esta vai ser sua entrevista”, disse. “Como assim?”, retruquei. “Na Ucrânia, jornalismo funciona assim: você só pode fazer as perguntas determinadas pelo diretor. Afinal, é um projeto de importância estratégica.”
O assessor, claro, sabia que eu iria reclamar e já tinha explicado a Konyukhov que não era preciso ter medo de mim. Ele poderia se recusar a responder algumas de minhas perguntas se quisesse. E eu não seria preso pelo governo caso minha reportagem o desagradasse.
O clima de segredo em que o projeto se arrastava era algo inadequado para uma iniciativa tocada com dinheiro público. Não era só culpa do autoritarismo soviético que ainda contamina a maneira com que Kiev faz as coisas. Roberto Amaral (PSB-CE), ex-ministro da ciência que dirigia a ACS, nunca deixou que jornalistas tivessem acesso ao plano de negócios da empresa. “É para a nossa concorrência não ver”, me dizia.
Amaral idealizou o projeto quando ainda era ministro, em 2003, discursando sobre sua importância para a soberania nacional. Na época, a imagem do ministro já estava manchada pela entrevista na qual dera uma declaração dúbia sobre o desejo do Brasil de produzir armas nucleares. Entre jornalistas, a piada é que ele tinha “uma bomba na cabeça e um foguete na mão”. Uma pessoa como essa reputação no primeiro escalão do governo era, no mínimo, desconfortável para o Brasil, país signatário de tratados de não-proliferação nuclear.
Ao cair do ministério, porém, Amaral foi presenteado por Lula com a diretoria da ACS, e o projeto continuou sendo tocado aos trancos e barrancos. A empresa, que perdeu uma disputa por território com comunidades quilombolas em Alcântara (MA), ganhou um terreno na base local da Aeronáutica, mas teve atrasos por causa de problemas com licenciamento ambiental e da demora do governo falido da Ucrânia em repassar sua parte do dinheiro. Os problemas que podem selar o destino da empresa, porém, são outros dois, conforme relata reportagem do incansável Claudio Angelo.
Um deles é a falta de um acordo de salvaguardas tecnológicas do Brasil com os EUA para impedir que satélites comerciais sejam vistoriados em Alcântara e acabem sendo “copiados” (quase todos os satélites têm peças americanas). Ironicamente, o Brasil negociava tal acordo em 2003, mas o próprio Amaral trabalhou para sabotar sua aprovação, alegando, também, questão de soberania. O ex-ministro mudou de ideia depois, claro, mas o acordo continua emperrado.
O outro problema que a ACS enfrenta agora é a revisão, para baixo, da perspectiva de lucro. Amaral estimava fazer sete lançamentos de satélites comerciais por ano, mas a nova diretoria da empresa fala em, no máximo, cinco. Quando contabilizados os gastos imprevistos que tornaram o projeto dez vezes mais caro que a estimativa inicial, fica difícil saber quando a empresa vai recuperar o investimento.
O governo brasileiro tem agora duas opções: ou injeta R$ 536 milhões extras para fazer o projeto decolar com pouca perspectiva de lucro, ou desiste de tudo e vê ir por água abaixo os R$ 197 milhões já investidos.
Caso decida salvar a ACS, é preciso levar em conta também o custo político de continuar fazendo negócio com a Ucrânia, país onde as instituições democráticas estão em crise. A ex-premiê Yulia Tymoshenko, que assinou acordos científicos com Lula, é hoje prisioneira política após o partido rival ter ganho uma eleição suspeita de fraude. Foi condenada a sete anos de prisão por improbidade administrativa num julgamento de fachada criticado pela ONU e pela UE.
Ainda assim, diplomaticamente talvez seja dificil demais para o Brasil pular fora do projeto da ACS agora. A falta de transparência impediu que uma decisão mais informada pudesse ter sido tomada antes. Se a empresa binacional naufragar por razões técnicas ou financeiras, porém, Brasília não sentirá saudades de Kiev.
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