segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Uso Sustentável do Espaço: Desafio do Século XXI

(José Monserrat Filho - Espaço Brasileiro / Brazilian Space) A recente queda na Terra do satélite americano UARS, de pesquisa da alta atmosfera, voltou a destacar a questão do lixo espacial e seu crescente perigo às atividades espaciais e à vida na Terra.

Matéria publicada na Folha de S. Paulo em 19 de setembro último, assinada por Giuliana Miranda, sob o título de “Queda de satélite aumenta tensão com lixo no espaço”, dá impressão de que a solução do problema encontra-se apenas na área tecnológica. Giuliana escreve: “Apesar de desejável , ainda não é possível fazer uma faxina espacial. Não existe tecnologia para remover todos os fragmentos, especialmente os menores, da órbita terrestre”. Isso não deixa de ser verdade. Mas omite o que certamente é imprescindível para se enfrentar essa ameaça cada vez maior: a vontade política e a busca de compromissos obrigatórios.

É bom lembrar: houve mais de 4.600 lançamentos espaciais nos 54 anos da “Era Espacial”, inaugurada em 4 de outubro de 1957, quando a então União Soviética colocou em órbita o Sputnik I, primeiro satélite artificial do planeta. Hoje, o Comando Espacial da Força Aérea dos EUA rastreia e monitora mais de 23 mil objetos espaciais feitos pela mão humana, maiores de 10 cm, entre eles, cerca de 900 satélites ativos. Os demais são restos de objetos inúteis, pedaços, escombros e fragmentos de satélites, sondas e foguetes, que se pulverizam ao se chocarem entre si. Estima-se que mais de 700 mil objetos menores de 10 cm circulam hoje nas órbitas mais usadas. Um objeto de 1 cm é capaz de desativar um satélite, enquanto um de 10 cm pode despedaçá-lo. Só em 2010, o referido Comando mandou mais de mil mensagens a governos de outros países, alertando para os riscos de colisão entre objetos espaciais ativos e/ou dejetos.

Em cinco anos (2005-2010), os investimentos espaciais públicos e privados aumentaram 48%, de 187 bilhões para 276 bilhões de dólares, segundo o Relatório de 2011 da Fundação Espacial dos EUA. Isso indica que o lixão espacial só faz crescer, colocando em cheque, cada vez mais, satélites, sondas e naves que prestam serviços aos países e às populações do planeta.

Os vôos tripulados, claro, também podem ser atingidos. Os detritos voam à velocidade de 15, 20 ou 30 mil km por hora. São demolidores. Podem abrir buracos em qualquer objeto espacial e causar um apagão, se desativarem satélites de utilidade pública, como os de telecomunicações, observação dos recursos naturais da Terra, meteorologia, localização e posicionamento, alerta e redução dos desastres naturais e provocados, entre outros.

Não por acaso, o fórum mundial dedicado aos 50 anos do vôo inaugural de Iuri Gagarin, promovido pela UNESCO em Paris no dia 21 de abril, foi palco da grande preocupação diante das ameaças ao uso seguro e sustentável do espaço, sobretudo das órbitas mais úteis aos serviços indispensáveis prestados aos habitantes da Terra. O alerta veio da fundadora e atual presidente da Fundação por um Mundo Seguro (Secure World Foundation - SWF), Cynda Collins Arsenault, durante o painel sobre a importância da exploração do espaço para a educação, ciência e cultura. “Gagarin reconheceu tanto a beleza quanto a fragilidade do nosso lar”, disse ela, referindo-se à Terra. E frisou: “É a hora de estudar o que deve ser feito para manter o espaço sustentável, a fim de que a humanidade possa seguir usando-o para fins pacíficos e benefícios sócio-econômicos”.

O Fórum Mundial sobre o Uso Pacífico do Espaço reuniu nesse debate , além de Arsenault, Narendra Bhandari, da Academia Nacional de Ciências da Índia; Dominique Proust, astrofísico do Observatório de Paris; Kirkham Gib, diretor da Divisão de Sistemas de Exploração e Pesquisa de Aeronáutica da NASA; e Thomas Culhane, cientista e pedagogo, do Iraque. Os moderadores da mesa foram Hans d’Orville, diretor-geral adjunto de Planejamento Estratégico da UNESCO, e Kapitza Serguey, professor da Rússia. Na platéia, astronautas, profissionais das atividades espaciais de vários países, cientistas, astrofísicos, administradores, historiadores e músicos.

Arsenault ressaltou os danos que o lixo espacial pode gerar, tanto a governos quanto a organizações internacionais e poderosas empresas multinacionais. Para ela, é preciso adotar medidas concretas para assegurar o uso seguro e sustentável do espaço em benefício da humanidade. A sustentabilidade das atividades espaciais, a seu ver, exige dois tipo de ação: 1) a gestão do lixo espacial, do espectro eletromagnético e do tráfego espacial; e 2) a gestão política, promovendo a estabilidade das relações no espaço e a preservação de possíveis conflitos. Cada gestão “requer novas normas, regras e mecanismos para proteger o patrimônio espacial global”, explicou Arsenault e salientou: esforço sério neste sentido é a criação, conduzida pela SWF, do Programa “Conhecimento da Situação no Espaço” (Space Situational Awareness – SSA), que buscará saber o que está acontecendo a cada momento no espaço. Esse programa, disse Arsenault, deve permitir aos atores espaciais operar com segurança e eficácia, cientes das ameaças a enfrentar e habilitados a reduzir o seu potencial. Arsenault frisou que o uso pacífico do espaço abre imenso universo de possibilidades e oportunidades, mas, advertiu, “precisaremos de cuidados especiais e planejamento acurado para garantir aos nossos filhos e aos filhos de nossos filhos a capacidade de colher as benesses que o espaço promete”.

A “Declaração sobre o 50º Aniversário do Primeiro Vôo Espacial Tripulado e o 50º Aniversário do Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS)” – aprovada em 1º de junho de 2011, em Viena, Áustria – expressa, em seu ponto 12, “profunda preocupação com a fragilidade do ambiente espacial e com os problemas da sustentabilidade a longo prazo das atividades espaciais, especialmente o impacto dos dejetos espaciais”. Tal visão, infelizmente, não prevaleceu na reunião do Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (conhecido por COPUOS, na sigla em inglês), realizada em Viena, de 28 de março a 8 de abril deste ano. O órgão, criado em 1961, congrega 70 países para discutir os problemas jurídicos das atividades espaciais. A proposta da República Tcheca de exame das questões legais causadas pelo lixo espacial não teve o apoio de quatro potências espaciais – EUA, França, Japão e Rússia – para se tornar novo tema de discussão na próxima reunião do Subcomitê Jurídico, em 2012.

Em 2007, o Subcomitê Técnico Científico do COPUOS aprovou as “Diretrizes para a Redução dos Dejetos Espaciais”, documento de regras técnicas, sem valor legal e, portanto, não obrigatório.

A idéia tcheca era a de transformar as diretrizes técnicas em declaração a ser aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, porque, por aí, elas poderiam, no futuro, ser convertidas em tratado internacional, obrigatório para todos os países que o ratificassem. A perspectiva maior era, assim, a de criar um instrumento com força total para se enfrentar o desafio do lixo espacial. EUA, França, Japão e Rússia não permitiram o consenso que aprovaria a proposta, alegando que suas empresas privadas poderiam ficar confusas e desorientadas com o debate sobre as diretrizes. As empresas, afirmaram esses países, estão tratando de ajustar as diretrizes às suas práticas e qualquer mudança pode atrapalhar o processo. O argumento parece ter convencido apenas seus próprios autores. Mas conseguiu deixar o tema fora da pauta. Ele não será debatido em 2012, como a maioria dos países considerava pertinente e necessário. E quando o será? Impossível prever. Mas a questão é tão grave que, cedo ou tarde, pode acabar se impondo, apesar das resistências.

Há ainda o perigo da instalação de armas em órbita da Terra e sua conseqüente conversão em teatro de guerra, como planejam algumas potências. Se efetivada, a nova realidade bélica pode causar males incalculáveis na Terra como no céu.

Os dejetos espaciais seguem sem definição jurídica internacional. Os tratados do direito espacial, ramo do direito internacional público, desconhecem a matéria. Se houvesse mais vontade política e colaboração, a lacuna já poderia ter sido preenchida, ainda que provisoriamente.

Já há leis nacionais a respeito, como a dos EUA (NASA’s Procedural Requirements for Limiting Orbital Debris). Na ausência de um marco jurídico global, a lei das grandes potências pode se tornar referência irresistível. Mas o lixo espacial é, claramente, questão planetária. Logo, não pode prescindir de legislação internacional. Revogam-se as inconsistências em contrário.

Gagarin nos revelou há 50 anos que “a Terra é azul”. Agora, sabemos, o espaço está virando lixão. Em meio século, saltamos de um fato emocionante a uma constatação alarmante. E ainda há quem sequer queira discutir o problema para se encontrar uma solução planejada, vigorosa e responsável, antes que seja tarde demais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário